Alexandre Luso de Carvalho
I – INTRODUÇÃO
A pandemia de Covid-19 trouxe duas tragédias: a primeira e mais importante é a perda de milhares de vidas (310.550 mortos até 27.03.2021, conforme dados do Governo Federal[1]); a segunda tragédia e a perda de empregos (em 2020 foi verificada a taxa de 13,5% da população[2]) em razão das restrições às atividades econômicas, devido à necessidade de distanciamento social.
Essa
perda de postos de trabalho com Carteira de Trabalho assinada leva à uma
consequente necessidade da realização da rescisão contratual com o pagamento de
todas as verbas dispostas em lei, o que acarreta, sem dúvida, um prejuízo ainda
maior às já combalidas empresas. É realmente desesperador.
II – DA DECLARAÇÃO DO PRESIDENTE DA
REPÚBLICA
Se já não bastasse o caos sanitário e econômico instalado no país, o Presidente
da República, em 27.03.2020[3], na sua
interminável guerra com os governadores e prefeitos, declarou (sic) “Tem um artigo na CLT que diz que todo
empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por
decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é
o governador e o prefeito, tá ok?”. Tal afirmação do
Presidente se refere ao artigo 486 da CLT, que assim determina:
Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva
do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou
pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da
atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do
governo responsável.
Mas
daí fica a pergunta: por que escrever sobre algo que o Presidente da República
disse há um ano atrás? A resposta é simples: porque tal declaração levou muitos
empresários, trabalhadores a difundirem sobre o dever de governadores e
prefeitos indenizarem pelas demissões ocorridas em razão das restrições
decorrentes do combate à pandemia. Aliás, até alguns advogados propagaram esse
suposto dever sem, entretanto, analisarem com profundidade sobre esse dispositivo
legal contido na CLT e da legislação específica sobre o combate à pandemia de
Covid-19.
III – UMA BREVE ANÁLISE DO ARTIGO 486
DA CLT
O artigo 486 da CLT, por implicar um custo ao Estado (União, Estados e Municípios) decorrentes de uma atitude extrema – a paralisação do trabalho – certamente não pode ser interpretado de maneira tão simplória como fez o Presidente da República. Aliás, o Presidente sequer interpretou o mencionado dispositivo legal.
O ilustre jurista VALENTIN CARRION[4], já ensinava que a
paralisação do trabalho por determinação da autoridade é uma espécie de força
maior (factum principis ou fato
do príncipe), no qual se destacam:
a) “(...) se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito
ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas (...)”;
b) “(...) se seu proceder foi
regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do
risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de
longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde
por essa tendência dos julgados.”
Com isso, cumpre salientar que a Lei nº 14.020/2020[5],
em consonância com o que já entendia a doutrina sobre a força maior e a
inaplicabilidade do artigo 486 da CLT, em razão da pandemia, estabeleceu em seu
artigo 29 o seguinte:
Art. 29. Não
se aplica o disposto no art. 486 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de
1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de
atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual
ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância
internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.
Por tais motivos, os Tribunais têm rechaçado os pedidos de condenação de
Estados e Municípios sob a fundamentação do artigo 486 da CLT, em decorrência
da pandemia de Covid-19, conforme ilustra-se com os julgados abaixo:
“PANDEMIA DA COVID-19
(CORONAVÍRUS). DECRETAÇÃO DE QUARENTENA NO ESTADO DE SÃO PAULO. SUSPENSÃO DE
ATIVIDADES E POSTERIOR ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO. DECRETO 64.881/2020 DO GOVERNADOR DO ESTADO.
ALEGAÇÃO DE FATO DO PRÍNCIPE. ART. 486 DA CLT. INAPLICABILIDADE. Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, na hipótese de
paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de
autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de
calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de
2020, e de emergência de saúde pública de saúde pública de importância
internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19), de que trata a Lei
13.979/2020. A norma do art. 486 da
CLT se aplica apenas para os atos discricionários do Poder Público, ou seja,
quando há conveniência e oportunidade, mas não dentro do contexto de pandemia,
que o ato da Administração Pública visa apenas a resguardar a saúde pública.
Neste mesmo sentido, o art. 29 da Lei 14.020/2020.” (TRT/2, RO nº
10006225320205020043, 17ª Turma – Cadeira 2, Rel. Desª Maria de Lourdes
Antônio, DJ em 10.12.2020) (Grifado)
SUSPENSÃO OU PARALISAÇÃO DE ATIVIDADES
EMPRESARIAIS POR ATO MUNICIPAL, ESTADUAL OU FEDERAL COM O OBJETIVO DE
ENFRENTAMENTO DO CORONAVÍRUS. APLICAÇÃO DO ART. 486 DA CLT. IMPOSSIBILIDADE. Nos termos do art. 29 da Lei 14.020/20, ‘não se aplica o disposto
no art. 486 da CLT aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943,
na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada
por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do
estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20
de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional
decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de
2020’. Uma vez incontroverso que
é exatamente essa a situação fática que se observa no caso dos autos, não é
possível o chamamento do Estado de Minas Gerais à autoria, pretendido pela
Reclamada.” (TRT-3, RO nº 0010497-10.2020.5.03.0052, 8ª Turma, Rel. Des. Márcio
Ribeiro do Valle, julgado em 29.10.2020).
IV - CONCLUSÃO
Obviamente, poder-se-ia analisar de forma bem mais detalhada o artigo 486 da CLT, trazendo outros tantos julgados e análises doutrinárias, deixando ainda mais evidente o desserviço que fez o mandatário maior do País ao abordar publicamente um assunto do qual não tem o menor conhecimento.
Tal desserviço a que me refiro, frise-se, não analiso pelo aspecto político, mas sim pelo aspecto jurídico, pois muitas pessoas ajuizaram ações contra Estados e Municípios, acreditando na afirmação do Presidente da República e não obtiveram sucesso, tendo, ainda que arcar com os prejuízos financeiros das ações e a frustração de uma ideia “vendida” pelo Presidente.
Assim, o que se deve sempre atentar-se é a necessidade de fazer a
dissociação da ciência, neste caso o Direito, do discurso político – de qualquer
ideologia –, já que esse, na maioria das vezes, no seu intuito de angariar adeptos,
distancia-se da melhor técnica e razão, o que agrava ainda mais a situação do
cidadão, já extremamente fragilizado.
Alexandre
Luso de Carvalho
OAB/RS
nº 44.808
[1] Fonte: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html
[2] Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/30235-com-pandemia-20-estados-tem-taxa-media-de-desemprego-recorde-em-2020
[4] CARRION, Valentin. Comentários à
Consolidação das Leis do Trabalho, 30ª edição atualizada. Editora Saraiva. 2005.
São Paulo. p. 387.
[5] Lei nº 14.020/2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis n os 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.101, de 19 de dezembro de 2000, 12.546, de 14 de dezembro de 2011, 10.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências.