28 de março de 2021

ESTADOS E MUNICÍPIOS DEVEM INDENIZAR POR DEMISSÕES EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES DE ATIVIDADES?


 

Alexandre Luso de Carvalho

 

I – INTRODUÇÃO

  

A pandemia de Covid-19 trouxe duas tragédias: a primeira e mais importante é a perda de milhares de vidas (310.550 mortos até 27.03.2021, conforme dados do Governo Federal[1]); a segunda tragédia e a perda de empregos (em 2020 foi verificada a taxa de 13,5% da população[2]) em razão das restrições às atividades econômicas, devido à necessidade de distanciamento social. 

Essa perda de postos de trabalho com Carteira de Trabalho assinada leva à uma consequente necessidade da realização da rescisão contratual com o pagamento de todas as verbas dispostas em lei, o que acarreta, sem dúvida, um prejuízo ainda maior às já combalidas empresas. É realmente desesperador.

  

II – DA DECLARAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

 

Se já não bastasse o caos sanitário e econômico instalado no país, o Presidente da República, em 27.03.2020[3], na sua interminável guerra com os governadores e prefeitos, declarou (sic) “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”. Tal afirmação do Presidente se refere ao artigo 486 da CLT, que assim determina:

 

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

  

Mas daí fica a pergunta: por que escrever sobre algo que o Presidente da República disse há um ano atrás? A resposta é simples: porque tal declaração levou muitos empresários, trabalhadores a difundirem sobre o dever de governadores e prefeitos indenizarem pelas demissões ocorridas em razão das restrições decorrentes do combate à pandemia. Aliás, até alguns advogados propagaram esse suposto dever sem, entretanto, analisarem com profundidade sobre esse dispositivo legal contido na CLT e da legislação específica sobre o combate à pandemia de Covid-19.

  

III – UMA BREVE ANÁLISE DO ARTIGO 486 DA CLT

  

O artigo 486 da CLT, por implicar um custo ao Estado (União, Estados e Municípios) decorrentes de uma atitude extrema – a paralisação do trabalho – certamente não pode ser interpretado de maneira tão simplória como fez o Presidente da República. Aliás, o Presidente sequer interpretou o mencionado dispositivo legal. 

O ilustre jurista VALENTIN CARRION[4], já ensinava que a paralisação do trabalho por determinação da autoridade é uma espécie de força maior (factum principis ou fato do príncipe), no qual se destacam:

 

a) “(...) se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas (...)”;

 

b) “(...) se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde por essa tendência dos julgados.”

 

Com isso, cumpre salientar que a Lei nº 14.020/2020[5], em consonância com o que já entendia a doutrina sobre a força maior e a inaplicabilidade do artigo 486 da CLT, em razão da pandemia, estabeleceu em seu artigo 29 o seguinte:

 

Art. 29. Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

  

Por tais motivos, os Tribunais têm rechaçado os pedidos de condenação de Estados e Municípios sob a fundamentação do artigo 486 da CLT, em decorrência da pandemia de Covid-19, conforme ilustra-se com os julgados abaixo:

 

PANDEMIA DA COVID-19 (CORONAVÍRUS). DECRETAÇÃO DE QUARENTENA NO ESTADO DE SÃO PAULO. SUSPENSÃO DE ATIVIDADES E POSTERIOR ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO. DECRETO 64.881/2020 DO GOVERNADOR DO ESTADO. ALEGAÇÃO DE FATO DO PRÍNCIPE. ART. 486 DA CLT. INAPLICABILIDADE. Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e de emergência de saúde pública de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19), de que trata a Lei 13.979/2020. A norma do art. 486 da CLT se aplica apenas para os atos discricionários do Poder Público, ou seja, quando há conveniência e oportunidade, mas não dentro do contexto de pandemia, que o ato da Administração Pública visa apenas a resguardar a saúde pública. Neste mesmo sentido, o art. 29 da Lei 14.020/2020.” (TRT/2, RO nº 10006225320205020043, 17ª Turma – Cadeira 2, Rel. Desª Maria de Lourdes Antônio, DJ em 10.12.2020) (Grifado)


SUSPENSÃO OU PARALISAÇÃO DE ATIVIDADES EMPRESARIAIS POR ATO MUNICIPAL, ESTADUAL OU FEDERAL COM O OBJETIVO DE ENFRENTAMENTO DO CORONAVÍRUS. APLICAÇÃO DO ART. 486 DA CLT. IMPOSSIBILIDADE. Nos termos do art. 29 da Lei 14.020/20, ‘não se aplica o disposto no art. 486 da CLT aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020’. Uma vez incontroverso que é exatamente essa a situação fática que se observa no caso dos autos, não é possível o chamamento do Estado de Minas Gerais à autoria, pretendido pela Reclamada.” (TRT-3, RO nº 0010497-10.2020.5.03.0052, 8ª Turma, Rel. Des. Márcio Ribeiro do Valle, julgado em 29.10.2020).

  

IV - CONCLUSÃO

  

Obviamente, poder-se-ia analisar de forma bem mais detalhada o artigo 486 da CLT, trazendo outros tantos julgados e análises doutrinárias, deixando ainda mais evidente o desserviço que fez o mandatário maior do País ao abordar publicamente um assunto do qual não tem o menor conhecimento. 

Tal desserviço a que me refiro, frise-se, não analiso pelo aspecto político, mas sim pelo aspecto jurídico, pois muitas pessoas ajuizaram ações contra Estados e Municípios, acreditando na afirmação do Presidente da República e não obtiveram sucesso, tendo, ainda que arcar com os prejuízos financeiros das ações e a frustração de uma ideia “vendida” pelo Presidente. 

Assim, o que se deve sempre atentar-se é a necessidade de fazer a dissociação da ciência, neste caso o Direito, do discurso político – de qualquer ideologia –, já que esse, na maioria das vezes, no seu intuito de angariar adeptos, distancia-se da melhor técnica e razão, o que agrava ainda mais a situação do cidadão, já extremamente fragilizado.

  

Alexandre Luso de Carvalho

OAB/RS nº 44.808

 

alexandre_luso@yahoo.com.br



[4] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 30ª edição atualizada. Editora Saraiva. 2005. São Paulo. p. 387.

[5] Lei nº 14.020/2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis n os 8.213, de 24 de julho de 199110.101, de 19 de dezembro de 200012.546, de 14 de dezembro de 201110.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências.


21 de março de 2021

O DESCUMPRIMENTO DAS RESTRIÇÕES DE CIRCULAÇÃO E DAS ATIVIDADES NOS TEMPOS DE PANDEMIA


 

Alexandre Luso de Carvalho

  

I – INTRODUÇÃO

 

As medidas restritivas que os governos estaduais e municipais têm adotado na tentativa de frear a contaminação da população para, também, aliviar a sobrecarga na rede hospitalar causa desespero e indignação dos setores de comércio e prestação de serviços, principalmente, já que esses praticamente perderam toda a sua receita e continuaram com as obrigações decorrentes de suas atividades.

Com isso, o que se vê são comerciantes e prestadores de serviços, em muitos casos, recusando-se ao cumprimento da suspensão de suas atividades, alegando estarem amparados pela Constituição Federal, quanto aos direitos de “ir e vir” (artigo 5º, inciso XV[1]) ou de trabalhar (artigos 5º, inciso XIII[2] e 6º[3]) ou, ainda, externando tal indignação conclamando a população à “desobediência civil”. Todavia, há de ser cuidado com tais atos.

 

II – DA RECUSA AO CUMPRIMENTO DAS DETERMINAÇÕES DAS AUTORIDADES

 

Em relação as medidas restritivas adotadas por prefeitos e governadores, por meio de decretos (municipais e estaduais), ocorrem, basicamente, em razão de três fatores:

 

a)   de lei federal (Lei nº 1.3979/2020), que “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”; 

b) de decisão do Supremo Tribunal Federal, que por unanimidade, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.341[4],  entendeu que os Estados e Municípios são competentes, junto com a União, para definir normas de isolamento e restrição;

c) o disposto contido no artigo 196 da Constituição Federal:  "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." Ou seja, o Estado, por meio de seus três entes (União, Estados e Municípios) tem o dever de agir em garantia da saúde.

 

Assim, esses três fatores legitimaram os governos estaduais e municipais, dentro de suas características e necessidades, a expedirem os decretos de restrição de locomoção e de atividades.

Outro aspecto importante de ser abordado é que as restrições de atividades e de locomoção decretadas por prefeitos e governadores não podem ser caracterizadas como análogas ao estado de sítio como, equivocadamente, o Presidente da República comparou, em 11.03.2021[5], o lockdown determinado pelo Governador do Distrito Federal, até pela conceituação de estado de sítio e requisitos para a sua decretação, contidos na Constituição Federal (artigo 137[6]), qual seja, é a medida tomada pelo Presidente da República, por meio de decreto, mediante autorização do Congresso Nacional, nos casos de:

 

“Art. 137 (...) 

I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; 

II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira;”

  

Portanto, quando vemos as decisões tomada por prefeitos e governadores, concordando ou não, estas são respaldadas por nosso sistema jurídico (lei e jurisprudência). Ou seja, pode-se questionar o mérito dos decretos, mas não a competência de quem os expedem.

  

II –DA DESOBEDIÊNCIA

 

Já em relação à “desobediência civil”, no caso em questão, quando alguém invoca tal direito ou conclama a população para tal, é necessário que antes realmente saiba do que se trata. Em poucas palavras, assim conceitua MAGALHÃES[7]:

 

“Tem origem no livro ‘Desobediência Civil’, de Henry Thoreau, escrito em 1847. Hoje significa manifestação e promoção de atos pacíficos que gerem um debate sobre os questionamentos da sociedade. O objetivo da desobediência civil pode ser chamar a atenção para uma lei injusta ou para uma causa justa; apelar à consciência do público; forçar autoridades relutantes a negociarem. Pode ser também o descumprimento aberto e público das leis por entenderem injustas. Foi utilizada na Índia, na luta contra a colonização britânica”.

 

Todavia, cumpre destacar um aspecto importante que abordado pelo Professor de História DANIEL NEVES SILVA[8]:

 

É importante considerar que o desrespeito à lei só é enquadrado dentro do conceito de desobediência civil quando movido por um sentimento de busca por igualdade ou justiça. A desobediência civil não é meramente uma ação individual, mas sim uma ação coletiva de um grupo que visa, por meio dela, realizar uma transformação social.

Sendo assim, esse tipo de desobediência não é um ato de desordem, uma vez que a sua intenção não é destruir o modelo democrático no qual estamos inseridos, mas transformá-lo, isto é, reformá-lo para que ele garanta igualdade e justiça a todos. Outro elemento fundamental dessa ideia é que ela é aplicada de maneira não violenta.” (Grifado)

  

Portanto, deve ser levado em consideração quanto à análise da desobediência civil, no caso de restrições por causa da pandemia, é se realmente as leis ou decretos são injustos ou se decorrem do princípio do interesse público sobre o privado, uma vez que o próprio Governo Federal reconheceu que o Brasil vive num estado de calamidade pública.

Saliente-se que a análise acerca de invocar ou praticar a desobediência civil no momento por qual passamos, não é só uma questão ideológica ou moral, mas jurídica, pois tal ato, em casos assim, provavelmente – para não dizer invariavelmente – é considerado ilícito civil e penal, o que acarreta uma série de consequências a quem descumpre as determinações das autoridades.

  

III – CONCLUSÃO

  

Assim, para finalizar, é fundamental que a população expresse o seu apoio ou descontentamento com as restrições impostas pelos prefeitos e governadores. Faz parte da democracia. Todavia, o cumprimento das determinações legais é ato que se faz necessário, pois também faz parte do estado democrático de direito, além do fato de que o descumprimento dos decretos trará consequências financeiras que agravarão o estado já grave dos comerciantes e prestadores de serviços, em razão da imposição de multas e perda de alvarás.

Portanto, há de se buscar as vias adequadas para mostrar seu inconformismo: o posicionamento político – dentro das restrições de não aglomeração e de outros limites legais – e/ou a busca do Poder Judiciário para reverter os decretos ou outras determinações das autoridades.

  

Alexandre Luso de Carvalho

OAB/RS nº 44.808

 

alexandre_luso@yahoo.com.br



[1] Constituição Federal, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

 [2] Constituição Federal, Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

 [3] Constituição Federal, Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

[4] STF, ADI 6.341, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15.04.2020.

[5] Vide: https://www.youtube.com/watch?v=g6tfa_xqHeQ

[6] Constituição Federal, Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

[7] MAGALHÃES, Esther C. Piragibe e MAGALHÃES, Marcelo C. Piragibe. Dicionário Jurídico Piragibe, 9ª edição,Lumen Juris Editora, 2007, Rio de Janeiro, p. 386.

[8] https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/desobediencia-civil.htm


14 de março de 2021

A PRIMAZIA DA REALIDADE NAS RELAÇÕES TRABALHISTAS


 

Alexandre Luso de Carvalho

 

 Muitas vezes numa ação trabalhista nos deparamos com um argumento denominado de Princípio da Primazia da Realidade. Mas o que significa isso? Conforme lição de AMÉRICO PLÁ RODRIGUES[1]O princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos. Ou seja, simplificando: é quando os fatos são mais importantes do que consta no contrato ou qualquer outro documento assinado pelas partes. 

Esse princípio tão simples do Direito do Trabalho, tem uma grande repercussão nas relações entre empregador e empregado, pois frequentemente resulta em condenações nas reclamatórias trabalhistas quando provado que houve o descumprimento do contrato, tendo o empregado extrapolado as suas atividades originais, agregando à sua rotina outras funções para as quais não foi contratado e tampouco lhe é paga a remuneração condizente. 

Portanto, toda a documentação existente (contrato, contracheques, recibo de férias, etc.) é ineficaz diante da prova da verdadeira rotina desempenhada pelo funcionário, conforme pode ser visto pelo julgado abaixo:

 

RECURSO DE REVISTA. ENQUADRAMENTO COMO PROFESSOR. REGRA DO ART. 317 DA CLT. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE. Embora o art. 317 da CLT exija como requisitos para o magistério a habilitação legal e registro no Ministério da Educação, a jurisprudência atual desta Corte tem o entendimento de que a exigência do referido dispositivo tem caráter meramente formal, prevalecendo o princípio da primazia da realidade, no qual se leva em conta se o trabalhador, de fato, exercia a atividade docente, para o seu enquadramento como professor. Recurso de revista conhecido por divergência jurisprudencial provido.” (TST, RR nº 28306201335020319, 3ª Turma, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, julgado em 16.08.2017, DEJT 18.08.2017). (Grifado)

  

Com isso, nos processos em que o Princípio da Primazia da Realidade é aplicado, as repercussões financeiras para o empregador, em razão da condenação ao pagamento das verbas trabalhistas relativas à verdadeira atividade desempenhada pelo empregado, podem chegar a valores expressivos e, dependendo do caso, significar um sério abalo para a empresa. 

Assim, é importante que o empregador tome algumas medidas preventivas, dependendo das características da empresa e do cargo desempenhado pelo funcionário e que terão como consequências a observância aos direitos do empregado e a diminuição da probabilidade de condenação em diversos pleitos que sejam buscados numa reclamatória trabalhista e, com isso, a diminuição do risco de um prejuízo financeiro. 

Por fim, é importante frisar que mesmo com a reforma trabalhista implementada em 2017 pela Lei nº 13.467/2017, que adequou e flexibilizou as relações trabalhistas, é fundamental o empregador ficar atento ao fato de que em razão da evolução do mercado de trabalho, das atividades desenvolvidas e do próprio nível de instrução e conscientização do trabalhador, não há mais lugar para improvisações na relação com o empregado, isto é, continuar com essa prática (de improvisação nas rotinas trabalhistas) implica em risco de no futuro haver prejuízo para as empresas por não observar os direitos do empregado.

 

Alexandre Luso de Carvalho

OAB/RS nº 44.808

 

alexandre_luso@yahoo.com.br


[1] PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2015, p. 339

 


7 de março de 2021

AS RESPONSABILIDADES DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS E DOS AUTÔNOMOS


 

Alexandre Luso de Carvalho

 

 I – INTRODUÇÃO

 

Quando se fala em profissionais liberais e autônomos, muitas vezes há confusão entre o que é um e o que é outro, bem como as suas responsabilidades pelo trabalho desempenhado mal desempenhado e suas consequências legais.

 Com isso, já na introdução desse artigo, cumpre diferenciar esses dois tipos de profissionais:

 

a)   o profissional liberal é aquele que tem uma formação técnica ou curso de graduação (curso superior), devendo ser registrado no seu Conselho profissional (OAB, CREA, CRM, etc.) e que pode exercer com liberdade e autonomia a sua profissão, podendo ou não ter vínculo de emprego. Exemplos de profissionais liberais: advogados, médicos engenheiros, educadores físicos, zootecnistas, técnicos em radiologia, enfermeiros. (vide lista completa no site da Confederação Nacional dos Profissionais Liberais[1])

 b)  o profissional autônomo é aquele que trabalha por conta própria, mas não necessita de uma formação técnica ou de graduação. Exemplo de trabalhadores autônomos: diarista, marceneiro, passeador de cães, pintor, etc.

 

A partir disso, cabe agora abordar de forma, ainda que resumida, as responsabilidades desses profissionais.

 

II – RESPONSABILIDADES DOS PROFISSIONAIS LIBERAIS

 

Quanto às obrigações dos profissionais liberais, estas geralmente são de meio e não de resultado. Vejamos dois exemplos: a) quando se contrata um advogado para atuar em um processo, a sua obrigação deste é atuar com diligência, mas não se pode exigir o resultado, até porque esse depende dos julgamentos do juiz, dos desembargadores, etc.; b) a obrigação do médico, geralmente, também é de meio, já que a cura de determinada doença não pode ser exigida, mas sim o tratamento adequado ao paciente.

 Todavia, ressalte-se, que nem todos os serviços prestados pelos profissionais liberais são obrigações de meio. Há alguns que estão atrelados ao exato resultado do que foi contratado, como, por exemplo, o tratamento odontológico estético, a cirurgia plástica somente com o objetivo estético, a elaboração de projeto de construção por engenheiro ou arquiteto, etc. Nessa hipótese, quando o profissional não entrega o trabalho com o resultado ajustado com o cliente ou paciente, há responsabilidade civil com a consequente possibilidade de indenização por danos material e/ou moral.

 Assim, a partir do momento em que se entende existir uma falha na atuação do profissional liberal e se busca a reparação, uma pergunta que, por vezes se faz é se cabe adotar o Código de Defesa do Consumidor. A resposta é sim. Todavia, diferentemente da maioria dos casos na qual a responsabilidade é objetiva, ou seja, independe de verificação de culpa e há a inversão do ônus da prova (quando o fornecedor de produtos e serviços é que deve provar que agiu de modo correto), em relação aos profissionais liberais, a regra é inversa: a responsabilização dependerá da verificação de culpa[2] e o ônus da prova é de quem alega[3], no caso o cliente ou paciente.


III – RESPONSABILIDADE DOS PROFISSIONAIS AUTÔNOMOS

 

No que diz respeito aos profissionais autônomos, a situação praticamente se inverte, pois esses geralmente têm a obrigação de resultado, isto é, o marceneiro deve fazer o móvel a contento, o pintor deve pintar e assim por diante.

Com isso, em casos de má prestação de serviços a responsabilidade do profissional autônomo pode ser considerada como objetiva (a que ocorre independentemente de verificação de culpa), bem como poderá ocorrer, também, a inversão do ônus da prova. Mas isso, importante registrar, que tendo em vista não se tratar de empresa prestadora de serviços, convém que o cliente também realize a prova do que foi ajustado, pois é bem provável que o magistrado, ao analisar o caso, não conceda a inversão do ônus da prova. 


IV - CONCLUSÃO

 

Por fim, pelo o que se viu acerca da responsabilização tanto dos profissionais liberais como dos profissionais autônomos, essa prescinde de provas. Num caso, tais provas serão produzidas pelos clientes/pacientes, noutro pelo prestador de serviços.

 Com isso, cabe a ambos os profissionais (liberais e autônomos), assim como o cliente ou paciente agirem de forma preventiva no que diz respeito à comprovação do que foi tratado, através da assinatura de contratos, bem como, sempre que possível, o registro das etapas do serviço prestado no sentido de provar que se esse está sendo prestado conforme o ajustado.

  

Alexandre Luso de Carvalho

OAB/RS nº 44.808

 

alexandre_luso@yahoo.com.br





[1] https://www.cnpl.org.br/o-profissional-liberal/

[2] Código de Defesa do Consumidor, Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (...) § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

[3] Código de Processo Civil, art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;