Alexandre
Luso de Carvalho
Foi
sancionada em 05.08.2020 o projeto de lei, originário da Medida Provisória nº
925/2020, que dispõe sobre providências e medidas emergenciais para auxílio ao
setor da aviação civil em razão da pandemia da Covid-19. É a Lei nº
14.034/2020.
Essa
lei estabelece alguns pontos em relação aos contratos de concessão de
aeroportos (art. 2º) com o Governo Federal, mas em sua maioria, mesmo que
temporariamente, altera a relação entre
empresas aéreas e o consumidor final. Vejamos o que mais me chamou a
atenção nessas alterações:
a)
Em
caso de CANCELAMENTO
DO VOO, o
consumidor terá direito:
a.1. ao reembolso do valor
da passagem aérea por cancelamento de voo entre 19.03.2020 a 31.12.2020, que será
realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do
voo cancelado, atualizado com base no INPC e, quando cabível, a prestação de
assistência material, nos termos da regulamentação vigente
(artigo 3º);
a.2. a optar em “receber crédito de valor maior ou igual
ao da passagem aérea, a ser utilizado, em nome próprio ou de terceiro, para a
aquisição de produtos ou serviços oferecidos pelo transportador, em até 18
(dezoito) meses, contados de seu recebimento”(parágrafo 1º do
artigo 3º);
a.3. sempre
que possível, como alternativa ao reembolso, as opções de reacomodação em outro
voo, próprio ou de terceiro, e de remarcação da passagem aérea, sem ônus,
mantidas as condições aplicáveis ao serviço contratado”
(parágrafo 2º do artigo 3º);
a.4. a receber o crédito da
passagem no prazo de 7 (sete) dias, contado da solicitação pelo passageiro (parágrafo
4º do artigo 3º);
a.5. “Em caso de
cancelamento do voo, o transportador, por solicitação do consumidor, deve
adotar as providências necessárias perante a instituição emissora do cartão de
crédito ou de outros instrumentos de pagamento utilizados para aquisição do
bilhete de passagem, com vistas à imediata interrupção da cobrança de eventuais
parcelas que ainda não tenham sido debitadas, sem prejuízo da restituição de
valores já pagos (...)” (parágrafo 8º do artigo 3º);
a.6. “O reembolso
dos valores referentes às tarifas aeroportuárias ou de outros valores devidos a
entes governamentais, pagos pelo adquirente da passagem e arrecadados por
intermédio do transportador, deverá ser realizado em até 7 (sete) dias,
contados da solicitação, salvo se, por opção do consumidor, a restituição for
feita mediante crédito, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste
artigo” (parágrafo 9º do artigo 3º).
b) Em caso de DESISTÊNCIA DO VOO pelo consumidor,
entre 19.03.2020 a 31.12.2020:
b.1. o
consumidor poderá receber reembolso no prazo de 12 (doze) meses, contado da
data do voo cancelado, atualizado pelo INPC, sujeito ao pagamento de eventuais
penalidades contratuais;
b.2. o
consumidor pode, também, optar por receber o crédito de valor correspondente ao
da passagem aérea, isento de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá
ser utilizado na forma do parágrafo 1º do artigo 3º
(parágrafo 3º do artigo 3º);
b.3.
o
disposto no parágrafo 3º[1] do
artigo 3º não se aplica ao
consumidor que desistir da passagem aérea adquirida com antecedência igual ou
superior a 7 (sete) dias à data de embarque, desde que o faça no prazo de 24
(vinte e quatro) horas, contado do recebimento do comprovante de aquisição do
bilhete de passagem, caso em que prevalecerá o disposto nas condições gerais
aplicáveis ao transporte aéreo regular de passageiros, doméstico e
internacional, estabelecidas em ato normativo da autoridade de aviação civil (parágrafo
6º do artigo 3º);
Importante destacar, também, que as hipóteses mencionadas acima,
aplicam-se também em duas situações muito comuns de acontecer, previstas nos
artigos 230 e 231 do Código Brasileiro de Aeronáutica[2] (parágrafo
5º do artigo 3º), quais sejam:
a) atraso da partida por mais de quatro horas;
b) quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em
aeroporto de escala por período superior a quatro horas, qualquer que seja o
motivo;
Outro
aspecto importante quanto ao reembolso ou ao recebimento do crédito,
reacomodação ou à remarcação “independe do
meio de pagamento utilizado para a compra da passagem, que pode ter sido
efetuada em pecúnia, crédito, pontos ou milhas” (parágrafo
7º do artigo 3º).
Além
das alterações acima mencionada, a Lei nº 14.034/2020 alterou vários
dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86), passando,
no que diz respeito às relações de consumo, a começar pela inclusão do artigo
251-A, que estabelece o seguinte:
“Art.
251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em
decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à
demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo
passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.”
Esse
artigo 251-A, condiciona a indenização
por dano extrapatrimonial (dano moral) por falha na prestação do serviço à
prova feita pelo consumidor. Tal alteração é muito significativa quanto aos
processos envolvendo as relações de consumo e, uma vez que a responsabilidade
do transportador é objetiva, isto é, independe da existência de culpa e o dano
moral é presumido (in re ipsa), bastando
provar a existência do fato lesivo ao direito do consumidor (relação de causa e
efeito), conforme pode ser visto pela jurisprudência:
RECURSO INOMINADO. TRANSPORTE AÉREO. ATRASO DE VOO. PERDA DA
CONEXÃO. AUSÊNCIA DE REACOMODAÇÃO DOS PASSAGEIROS EM OUTRO VOO. FALHA NA
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANO MORAL CONFIGURADO IN RE
IPSA. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO. JUROS DEMORA. TERMO INICIAL. CITAÇÃO, POR
SE TRATAR DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
(TJMT, RI nº 10017040320198110028, Turma Recursal Única,
Rel. Juiz Gonçalo Antunes de Barros Neto, julgado em 16.07.2020)
APELAÇÃO.
AÇÃO INDENIZATÓRIA. TRANSPORTE AÉREO NACIONAL DE PASSAGEIRO. ATRASO DO VOO EM
APROXIMADAMENTE 13 (TREZE) HORAS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA RÉ. DANO MORAL
IN RE IPSA. QUANTUM DEBEATUR. A especial
circunstância da Autora ter sido vítima de falha na prestação dos serviços
contratados no que tange ao atraso do voo em aproximadamente 13 (treze) horas,
implica na necessidade ser atendida a pretensão de fixação do valor
indenizatório em R$15.000,00 (quinze mil reais), por força dos princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade. Sentença reformada. Recurso provido.
(TJSP,
AC nº 10200826520198260003, 38º Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Eduardo
Siqueira, julgado em 26.05.2020)
Portanto, a meu ver, o que se verifica no artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica é
uma lesão aos direitos do consumidor, dificultando sua busca por reparações à
rotineira má-prestação de serviços das empresas aéreas, até porque afronta de modo explícito vários princípios
estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor.
Ainda sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, outra
alteração chamou-me atenção, dessa vez benéfica ao consumidor. Foi a inclusão do parágrafo 4º, do artigo
256, que assim dispõe:
Art. 256. O transportador responde pelo
dano decorrente:
§ 1° O transportador não será responsável:
(...)
II - no caso do inciso II do caput deste artigo,
se comprovar que, por motivo de caso fortuito ou de força maior, foi impossível
adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano.
(...)
§ 4º A previsão constante do inciso II do § 1º deste artigo não
desobriga o transportador de oferecer assistência material ao passageiro, bem
como de oferecer as alternativas de reembolso do valor pago pela passagem e por
eventuais serviços acessórios ao contrato de transporte, de reacomodação ou de
reexecução do serviço por outra modalidade de transporte, inclusive nas
hipóteses de atraso e de interrupção do voo por período superior a 4 (quatro)
horas de que tratam os arts. 230 e 231 desta Lei.
Isto
é, apesar de não ser responsabilizado pelo atraso em caso fortuito ou de força
maior – e de impossível solução – a lei não desobrigou as empresas aéreas de
minimizar os danos com o atraso no voo.
Outras
alterações na mencionada lei foram promovidas, mas sem maiores impactos nos
direitos dos consumidores e se mostraram bastante razoáveis, não merecendo uma
análise específica, como foram feitas nos artigos 251-A e 256, parágrafo 4º.
Com
isso, no louvável sentido de auxiliar o setor aéreo, que sofre de maneira muito
severa com a pandemia de Covid-19, o Governo Federal, por meio da a Lei nº
14.034/2020, a meu ver errou, no entanto, ao suprimir direitos importantes do
consumidor – parte mais frágil da relação com as empresas aéreas, mesmo que
isso contrarie o próprio Código de Defesa do Consumidor.
Portanto,
em razão de estarmos diante de dispositivos que se mostram antagônicos sobre um
determinado aspecto (necessidade da prova da lesão ao direito), em caso de desrespeito
ao direito do consumidor, há de analisar-se o caso e a documentação – que deve
sempre ser guardada pelo consumidor, até pela insegurança legal promovida pela
Lei nº 14.034/2020 – para buscar-se o devido ressarcimento, se for o caso.
Alexandre
Luso de Carvalho
OAB/RS
nº 44.808
Fonte da imagem
[1] Lei nº 14.034/2020. Art. 3º
(...) § 3º. O consumidor que desistir de voo
com data de início no período entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de
2020 poderá optar por receber reembolso, na forma e no prazo previstos no caput deste
artigo, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais, ou por obter
crédito de valor correspondente ao da passagem aérea, sem incidência de
quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º
deste artigo.
[2] Código Brasileiro de
Aeronáutica:
Art. 230. Em caso de atraso
da partida por mais de quatro horas, a transportador providenciará o embarque
do passageiro, em voo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se
houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir, o valor do
bilhete de passagem.
Art. 231. Quando o transporte
sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a
quatro horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo
endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço.
Um importante artigo jurídico sobre o projeto de lei que “dispõe sobre providências e medidas emergenciais para auxílio ao setor da aviação civil em razão da pandemia da Covid-19”.
ResponderExcluirNão tenho dúvida de que esse artigo veio ajudar muitas pessoas, dentre elas, os operadores do Direito.
Parabéns Alexandre pela excelência deste trabalho.
Um grande abraço do teu pai.
Oi pai, boa noite.
ExcluirQue bom que gostaste do artigo! Assim como quase todos os setores da economia, o setor aéreo sofreu um grande impacto em razão da pandemia e necessita, também, de auxílio. Todavia, o auxílio acabou, em alguns aspectos, privilegiando as empresas em detrimento do consumidor - parte mais frágil da relação.
Abração!
Olá Dr. Alexandre, este foi o melhor artigo que já li em seu blog. Parabéns.
ResponderExcluirBom dia, caríssimo Israel.
ExcluirMuito obrigado pela leitura e pelo elogio.
Por ser um tema novo - aliás, todos os que trato sobre a pandemia o são - alguns necessitam de uma explanação um pouco mais extensa, como o presente. Assim, esse teu retorno me deixa muita feliz, pois o artigo parece estar cumprindo seu papel.
Forte abraço e ótima semana!