10 de agosto de 2020

O AUXÍLIO AO SETOR AÉREO E SUAS REPERCUSSÕES AO CONSUMIDOR






Alexandre Luso de Carvalho


Foi sancionada em 05.08.2020 o projeto de lei, originário da Medida Provisória nº 925/2020, que dispõe sobre providências e medidas emergenciais para auxílio ao setor da aviação civil em razão da pandemia da Covid-19. É a Lei nº 14.034/2020.

Essa lei estabelece alguns pontos em relação aos contratos de concessão de aeroportos (art. 2º) com o Governo Federal, mas em sua maioria, mesmo que temporariamente, altera a relação entre empresas aéreas e o consumidor final. Vejamos o que mais me chamou a atenção nessas alterações:

a)   Em caso de CANCELAMENTO DO VOO, o consumidor terá direito:

a.1. ao reembolso do valor da passagem aérea por cancelamento de voo entre 19.03.2020 a 31.12.2020, que será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, atualizado com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente (artigo 3º);

a.2. a optar em “receber crédito de valor maior ou igual ao da passagem aérea, a ser utilizado, em nome próprio ou de terceiro, para a aquisição de produtos ou serviços oferecidos pelo transportador, em até 18 (dezoito) meses, contados de seu recebimento”(parágrafo 1º do artigo 3º);

a.3. sempre que possível, como alternativa ao reembolso, as opções de reacomodação em outro voo, próprio ou de terceiro, e de remarcação da passagem aérea, sem ônus, mantidas as condições aplicáveis ao serviço contratado” (parágrafo 2º do artigo 3º);

a.4. a receber o crédito da passagem no prazo de 7 (sete) dias, contado da solicitação pelo passageiro (parágrafo 4º do artigo 3º);

a.5.Em caso de cancelamento do voo, o transportador, por solicitação do consumidor, deve adotar as providências necessárias perante a instituição emissora do cartão de crédito ou de outros instrumentos de pagamento utilizados para aquisição do bilhete de passagem, com vistas à imediata interrupção da cobrança de eventuais parcelas que ainda não tenham sido debitadas, sem prejuízo da restituição de valores já pagos (...)” (parágrafo 8º do artigo 3º);

a.6. O reembolso dos valores referentes às tarifas aeroportuárias ou de outros valores devidos a entes governamentais, pagos pelo adquirente da passagem e arrecadados por intermédio do transportador, deverá ser realizado em até 7 (sete) dias, contados da solicitação, salvo se, por opção do consumidor, a restituição for feita mediante crédito, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste artigo(parágrafo 9º do artigo 3º).


b)  Em caso de DESISTÊNCIA DO VOO pelo consumidor, entre 19.03.2020 a 31.12.2020:

b.1. o consumidor poderá receber reembolso no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, atualizado pelo INPC, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais;

b.2. o consumidor pode, também, optar por receber o crédito de valor correspondente ao da passagem aérea, isento de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do parágrafo 1º do artigo 3º (parágrafo 3º do artigo 3º);

b.3. o disposto no parágrafo 3º[1] do artigo 3º não se aplica ao consumidor que desistir da passagem aérea adquirida com antecedência igual ou superior a 7 (sete) dias à data de embarque, desde que o faça no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contado do recebimento do comprovante de aquisição do bilhete de passagem, caso em que prevalecerá o disposto nas condições gerais aplicáveis ao transporte aéreo regular de passageiros, doméstico e internacional, estabelecidas em ato normativo da autoridade de aviação civil (parágrafo 6º do artigo 3º);


Importante destacar, também, que as hipóteses mencionadas acima, aplicam-se também em duas situações muito comuns de acontecer, previstas nos artigos 230 e 231 do Código Brasileiro de Aeronáutica[2] (parágrafo 5º do artigo 3º), quais sejam:

a) atraso da partida por mais de quatro horas;

b)  quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a quatro horas, qualquer que seja o motivo;

Outro aspecto importante quanto ao reembolso ou ao recebimento do crédito, reacomodação ou à remarcação “independe do meio de pagamento utilizado para a compra da passagem, que pode ter sido efetuada em pecúnia, crédito, pontos ou milhas” (parágrafo 7º do artigo 3º).

Além das alterações acima mencionada, a Lei nº 14.034/2020 alterou vários dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº 7.565/86), passando, no que diz respeito às relações de consumo, a começar pela inclusão do artigo 251-A, que estabelece o seguinte:

Art. 251-A. A indenização por dano extrapatrimonial em decorrência de falha na execução do contrato de transporte fica condicionada à demonstração da efetiva ocorrência do prejuízo e de sua extensão pelo passageiro ou pelo expedidor ou destinatário de carga.

Esse artigo 251-A, condiciona a indenização por dano extrapatrimonial (dano moral) por falha na prestação do serviço à prova feita pelo consumidor. Tal alteração é muito significativa quanto aos processos envolvendo as relações de consumo e, uma vez que a responsabilidade do transportador é objetiva, isto é, independe da existência de culpa e o dano moral é presumido (in re ipsa), bastando provar a existência do fato lesivo ao direito do consumidor (relação de causa e efeito), conforme pode ser visto pela jurisprudência:

RECURSO INOMINADO. TRANSPORTE AÉREO. ATRASO DE VOO. PERDA DA CONEXÃO. AUSÊNCIA DE REACOMODAÇÃO DOS PASSAGEIROS EM OUTRO VOO. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANO MORAL CONFIGURADO IN RE IPSA. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO. JUROS DEMORA. TERMO INICIAL. CITAÇÃO, POR SE TRATAR DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
(TJMT, RI nº 10017040320198110028, Turma Recursal Única, Rel. Juiz Gonçalo Antunes de Barros Neto, julgado em 16.07.2020)


APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. TRANSPORTE AÉREO NACIONAL DE PASSAGEIRO. ATRASO DO VOO EM APROXIMADAMENTE 13 (TREZE) HORAS. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA RÉ. DANO MORAL IN RE IPSA. QUANTUM DEBEATUR. A especial circunstância da Autora ter sido vítima de falha na prestação dos serviços contratados no que tange ao atraso do voo em aproximadamente 13 (treze) horas, implica na necessidade ser atendida a pretensão de fixação do valor indenizatório em R$15.000,00 (quinze mil reais), por força dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Sentença reformada. Recurso provido.
(TJSP, AC nº 10200826520198260003, 38º Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Eduardo Siqueira, julgado em 26.05.2020)


Portanto, a meu ver, o que se verifica no artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica é uma lesão aos direitos do consumidor, dificultando sua busca por reparações à rotineira má-prestação de serviços das empresas aéreas, até porque afronta de modo explícito vários princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor.

Ainda sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, outra alteração chamou-me atenção, dessa vez benéfica ao consumidor. Foi a inclusão do parágrafo 4º, do artigo 256, que assim dispõe:

Art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:
§ 1° O transportador não será responsável:
(...)
II - no caso do inciso II do caput deste artigo, se comprovar que, por motivo de caso fortuito ou de força maior, foi impossível adotar medidas necessárias, suficientes e adequadas para evitar o dano.
(...)
§ 4º A previsão constante do inciso II do § 1º deste artigo não desobriga o transportador de oferecer assistência material ao passageiro, bem como de oferecer as alternativas de reembolso do valor pago pela passagem e por eventuais serviços acessórios ao contrato de transporte, de reacomodação ou de reexecução do serviço por outra modalidade de transporte, inclusive nas hipóteses de atraso e de interrupção do voo por período superior a 4 (quatro) horas de que tratam os arts. 230 e 231 desta Lei.


Isto é, apesar de não ser responsabilizado pelo atraso em caso fortuito ou de força maior – e de impossível solução – a lei não desobrigou as empresas aéreas de minimizar os danos com o atraso no voo.

Outras alterações na mencionada lei foram promovidas, mas sem maiores impactos nos direitos dos consumidores e se mostraram bastante razoáveis, não merecendo uma análise específica, como foram feitas nos artigos 251-A e 256, parágrafo 4º.

Com isso, no louvável sentido de auxiliar o setor aéreo, que sofre de maneira muito severa com a pandemia de Covid-19, o Governo Federal, por meio da a Lei nº 14.034/2020, a meu ver errou, no entanto, ao suprimir direitos importantes do consumidor – parte mais frágil da relação com as empresas aéreas, mesmo que isso contrarie o próprio Código de Defesa do Consumidor.

Portanto, em razão de estarmos diante de dispositivos que se mostram antagônicos sobre um determinado aspecto (necessidade da prova da lesão ao direito), em caso de desrespeito ao direito do consumidor, há de analisar-se o caso e a documentação – que deve sempre ser guardada pelo consumidor, até pela insegurança legal promovida pela Lei nº 14.034/2020 – para buscar-se o devido ressarcimento, se for o caso.

Alexandre Luso de Carvalho
OAB/RS nº 44.808





Fonte da imagem


[1] Lei nº 14.034/2020. Art. 3º (...) § 3º.  O consumidor que desistir de voo com data de início no período entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 poderá optar por receber reembolso, na forma e no prazo previstos no caput deste artigo, sujeito ao pagamento de eventuais penalidades contratuais, ou por obter crédito de valor correspondente ao da passagem aérea, sem incidência de quaisquer penalidades contratuais, o qual poderá ser utilizado na forma do § 1º deste artigo.

[2] Código Brasileiro de Aeronáutica:

Art. 230. Em caso de atraso da partida por mais de quatro horas, a transportador providenciará o embarque do passageiro, em voo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir, o valor do bilhete de passagem.

Art. 231. Quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a quatro horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço.

4 comentários:

  1. Um importante artigo jurídico sobre o projeto de lei que “dispõe sobre providências e medidas emergenciais para auxílio ao setor da aviação civil em razão da pandemia da Covid-19”.
    Não tenho dúvida de que esse artigo veio ajudar muitas pessoas, dentre elas, os operadores do Direito.
    Parabéns Alexandre pela excelência deste trabalho.

    Um grande abraço do teu pai.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi pai, boa noite.

      Que bom que gostaste do artigo! Assim como quase todos os setores da economia, o setor aéreo sofreu um grande impacto em razão da pandemia e necessita, também, de auxílio. Todavia, o auxílio acabou, em alguns aspectos, privilegiando as empresas em detrimento do consumidor - parte mais frágil da relação.

      Abração!

      Excluir
  2. Olá Dr. Alexandre, este foi o melhor artigo que já li em seu blog. Parabéns.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom dia, caríssimo Israel.

      Muito obrigado pela leitura e pelo elogio.

      Por ser um tema novo - aliás, todos os que trato sobre a pandemia o são - alguns necessitam de uma explanação um pouco mais extensa, como o presente. Assim, esse teu retorno me deixa muita feliz, pois o artigo parece estar cumprindo seu papel.

      Forte abraço e ótima semana!

      Excluir