28 de março de 2021

ESTADOS E MUNICÍPIOS DEVEM INDENIZAR POR DEMISSÕES EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES DE ATIVIDADES?


 

Alexandre Luso de Carvalho

 

I – INTRODUÇÃO

  

A pandemia de Covid-19 trouxe duas tragédias: a primeira e mais importante é a perda de milhares de vidas (310.550 mortos até 27.03.2021, conforme dados do Governo Federal[1]); a segunda tragédia e a perda de empregos (em 2020 foi verificada a taxa de 13,5% da população[2]) em razão das restrições às atividades econômicas, devido à necessidade de distanciamento social. 

Essa perda de postos de trabalho com Carteira de Trabalho assinada leva à uma consequente necessidade da realização da rescisão contratual com o pagamento de todas as verbas dispostas em lei, o que acarreta, sem dúvida, um prejuízo ainda maior às já combalidas empresas. É realmente desesperador.

  

II – DA DECLARAÇÃO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

 

Se já não bastasse o caos sanitário e econômico instalado no país, o Presidente da República, em 27.03.2020[3], na sua interminável guerra com os governadores e prefeitos, declarou (sic) “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”. Tal afirmação do Presidente se refere ao artigo 486 da CLT, que assim determina:

 

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

  

Mas daí fica a pergunta: por que escrever sobre algo que o Presidente da República disse há um ano atrás? A resposta é simples: porque tal declaração levou muitos empresários, trabalhadores a difundirem sobre o dever de governadores e prefeitos indenizarem pelas demissões ocorridas em razão das restrições decorrentes do combate à pandemia. Aliás, até alguns advogados propagaram esse suposto dever sem, entretanto, analisarem com profundidade sobre esse dispositivo legal contido na CLT e da legislação específica sobre o combate à pandemia de Covid-19.

  

III – UMA BREVE ANÁLISE DO ARTIGO 486 DA CLT

  

O artigo 486 da CLT, por implicar um custo ao Estado (União, Estados e Municípios) decorrentes de uma atitude extrema – a paralisação do trabalho – certamente não pode ser interpretado de maneira tão simplória como fez o Presidente da República. Aliás, o Presidente sequer interpretou o mencionado dispositivo legal. 

O ilustre jurista VALENTIN CARRION[4], já ensinava que a paralisação do trabalho por determinação da autoridade é uma espécie de força maior (factum principis ou fato do príncipe), no qual se destacam:

 

a) “(...) se o ato da autoridade é motivado por comportamento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas (...)”;

 

b) “(...) se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde por essa tendência dos julgados.”

 

Com isso, cumpre salientar que a Lei nº 14.020/2020[5], em consonância com o que já entendia a doutrina sobre a força maior e a inaplicabilidade do artigo 486 da CLT, em razão da pandemia, estabeleceu em seu artigo 29 o seguinte:

 

Art. 29. Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

  

Por tais motivos, os Tribunais têm rechaçado os pedidos de condenação de Estados e Municípios sob a fundamentação do artigo 486 da CLT, em decorrência da pandemia de Covid-19, conforme ilustra-se com os julgados abaixo:

 

PANDEMIA DA COVID-19 (CORONAVÍRUS). DECRETAÇÃO DE QUARENTENA NO ESTADO DE SÃO PAULO. SUSPENSÃO DE ATIVIDADES E POSTERIOR ENCERRAMENTO DO ESTABELECIMENTO. DECRETO 64.881/2020 DO GOVERNADOR DO ESTADO. ALEGAÇÃO DE FATO DO PRÍNCIPE. ART. 486 DA CLT. INAPLICABILIDADE. Não se aplica o disposto no art. 486 da CLT, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e de emergência de saúde pública de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (COVID-19), de que trata a Lei 13.979/2020. A norma do art. 486 da CLT se aplica apenas para os atos discricionários do Poder Público, ou seja, quando há conveniência e oportunidade, mas não dentro do contexto de pandemia, que o ato da Administração Pública visa apenas a resguardar a saúde pública. Neste mesmo sentido, o art. 29 da Lei 14.020/2020.” (TRT/2, RO nº 10006225320205020043, 17ª Turma – Cadeira 2, Rel. Desª Maria de Lourdes Antônio, DJ em 10.12.2020) (Grifado)


SUSPENSÃO OU PARALISAÇÃO DE ATIVIDADES EMPRESARIAIS POR ATO MUNICIPAL, ESTADUAL OU FEDERAL COM O OBJETIVO DE ENFRENTAMENTO DO CORONAVÍRUS. APLICAÇÃO DO ART. 486 DA CLT. IMPOSSIBILIDADE. Nos termos do art. 29 da Lei 14.020/20, ‘não se aplica o disposto no art. 486 da CLT aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, na hipótese de paralisação ou suspensão de atividades empresariais determinada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal para o enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020’. Uma vez incontroverso que é exatamente essa a situação fática que se observa no caso dos autos, não é possível o chamamento do Estado de Minas Gerais à autoria, pretendido pela Reclamada.” (TRT-3, RO nº 0010497-10.2020.5.03.0052, 8ª Turma, Rel. Des. Márcio Ribeiro do Valle, julgado em 29.10.2020).

  

IV - CONCLUSÃO

  

Obviamente, poder-se-ia analisar de forma bem mais detalhada o artigo 486 da CLT, trazendo outros tantos julgados e análises doutrinárias, deixando ainda mais evidente o desserviço que fez o mandatário maior do País ao abordar publicamente um assunto do qual não tem o menor conhecimento. 

Tal desserviço a que me refiro, frise-se, não analiso pelo aspecto político, mas sim pelo aspecto jurídico, pois muitas pessoas ajuizaram ações contra Estados e Municípios, acreditando na afirmação do Presidente da República e não obtiveram sucesso, tendo, ainda que arcar com os prejuízos financeiros das ações e a frustração de uma ideia “vendida” pelo Presidente. 

Assim, o que se deve sempre atentar-se é a necessidade de fazer a dissociação da ciência, neste caso o Direito, do discurso político – de qualquer ideologia –, já que esse, na maioria das vezes, no seu intuito de angariar adeptos, distancia-se da melhor técnica e razão, o que agrava ainda mais a situação do cidadão, já extremamente fragilizado.

  

Alexandre Luso de Carvalho

OAB/RS nº 44.808

 

alexandre_luso@yahoo.com.br



[4] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 30ª edição atualizada. Editora Saraiva. 2005. São Paulo. p. 387.

[5] Lei nº 14.020/2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda; dispõe sobre medidas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020; altera as Leis n os 8.213, de 24 de julho de 199110.101, de 19 de dezembro de 200012.546, de 14 de dezembro de 201110.865, de 30 de abril de 2004, e 8.177, de 1º de março de 1991; e dá outras providências.


4 comentários:

  1. Boa tarde Alexandre Luso Carvalho.

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  2. Boa noite, Leni!

    Obrigado pela leitura do artigo!

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  3. Gostei de o ler.
    De facto, a situação é complicada tanto para os trabalhadores, como para os empresários e municípios...
    Bolsonaro quando abre a boca sai uma tolice gigantesca e grosseira... Já é como um bobo internacional! Os brasileiros não merecem, nem ninguém merece tal sorte.
    Boa Páscoa, Alexandre. Beijinho.
    ~~~~~~~

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  4. Bom dia, Majo Dutra!

    Realmente, as impropriedade que o Presidente Bolsonaro diz, de forma pública, sobre todas as áreas (saúde, educação, direito, economia) causam grande desserviço à população e instabilidade dentro e fora do país, o que acaba inevitavelmente prejudicando o Brasil. Deveria falar menos e deixar tais pronunciamentos para os profissionais das respectivas áreas.

    Boa Páscoa! Grande abraço!

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